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quarta-feira, 29 de julho de 2009

Quadrinhos: A linguagem e seu vocabulário (parte3)

Pensamento ocidental X oriental

"Como sabem, sou japonês, logo, não pertenço à esfera cultural cristã. Se me perguntarem se sou budista, tenho que responder um "?". O budismo nega o absoluto e fala de "Shikisokuzeku Kusokuzeshiki" ("Quando você acha que há algo, não há nada. Quando você acha que não há nada, há algo". – Em uma tradução livre) isto é, ensina a aceitar a incerteza, o fato de que tudo é incerto.(...)”19

Hiroki Endo

Esse pensamento budista revela uma posição diferente da cultura ocidental quanto á definição de tudo e nada. O pensamento ocidental, em sua maioria influenciado pela tradição cristã, entende o nada como "ausência de algo". Nada mais coerente com um pensamento criacionista, onde Deus criou todas as coisas. Não temos um Deus que destrói, muito menos um Deus que constrói. Nosso Deus cria. Porque só se constrói usando-se de algo já existente(ou você já viu alguém fazer surgir na sua frente um macaco num estalar de dedos? Pra fazer um macaquinho, preciso de um macaco e de uma macaca...); enquanto o homem constrói, Deus pode criar do nada. Visto dessa forma vemos que há uma inclinação em valorizar o que existe, e não o que não existe, a "ausência". Como está escrito no gênesis: "e viu que era bom."

“Quando você acha que há algo, não há nada. Quando você acha que não há nada, há algo” – Esse princípio de incerteza é totalmente inverso ao pensamento relativista, onde tudo é relativo, pode ser ou não.

Grande Onda de Kanagawa (1829), de Katshika Hokusai: Se virado de cabeça para baixo, é possível identificar uma outra onda no espaço negativo

A meditação nada mais é do que esvaziar sua mente de qualquer pensamento, uma maneira de se conectar com o universo atingindo o auge, onde está o Nirvana, a forma máxima de contemplação. O mantra é uma seqüência de palavras pronunciadas diversas vezes na meditação, até que qualquer significado que pudessem ter tido perde-se, como a brincadeira de ficar repetindo “porta” várias vezes, até que soe estranha a pronuncia, como se não houvesse mais sentido nelas.

Brush Painting Manual: Hawk: vê-se claramente que há uma preocupação com o espaço vazio em volta da águia na composição da imagem

Esse tipo de filosofia influenciou e muito a arte japonesa, resultando em um modo de ver a arte totalmente diferente do modo ocidental, utilizando o nada, ou simplesmente (não tão simples assim) o "vazio".

Falemos então de "vazio". No cinema, um personagem que aparece caminhando na rua durante uma cena pode aparecer sentado num bar na cena seguinte que nós não acharemos nada de estranho nisso. Repare:

1ª cena: homem caminhando pela rua da lapa;
Corte
2ª cena: homem bebendo no bar;
Corte
3ª cena: homem chegando em casa bêbado.

Antes de mais nada, talvez este exemplo não funcione caso você não conheça a rua da lapa, localizada no Centro do Rio de janeiro. De certa forma, caso não conheça, para que não nos detenhamos muito nesse assunto, basta que saiba que podemos associar a rua da lapa com bebida. Voltando ao exemplo, não é preciso que se mostre o homem caminhando e entrando no bar logo em seguida para que entendemos isso. Também não é preciso que se mostre que ele bebeu 5 ou 6 garrafas de bebida alcoólica para entender que ele chegou bêbado em casa. Nós supomos isso, concluímos a idéia. A esse fenômeno chama-se elipse ou conclusão e serve como meio de interação entre espectador e obra, fazendo com que o espectador participe na construção da história. Nos quadrinhos ocorre a mesma coisa, mas talvez de forma um pouco mais complexa.

Exemplo de Sarjeta em Desvendando os quadrinhos de Scott Mccloud

O espaço entre dois quadros, a sarjeta, seria a elipse de uma história animada. A diferença é que a hq não dispõe da animação dos 24 quadros por segundo que a animação cinematográfica dispõe, criando a ilusão de movimento. Basicamente, a hq só necessita de 2 quadros para surtir o mesmo efeito. Ao vermos um filme no cinema ou na televisão constantemente realizamos o processo de conclusão, juntando os 24 quadros e criando "vida" em 1 segundo. A diferença é que esse ato não é totalmente voluntário, pois esse é o mínimo de quadros que nosso olho pode perceber. Mais que isso, o resultado é o movimento que ocorre devido a um fenômeno chamado persistência retiniana(os pioneiros na arte de animar objetos inanimados, a técnica stop motion, sacaram muito bem isso), no qual fundimos o quadro anterior com o que quadro seguinte, criando(concluindo) um terceiro entre eles obtendo animação integral. Mas não passa de ilusão.

A conclusão nos permite reduzir nossa história ao mais simples possível:

1ª cena: homem caminhando pela rua da lapa;
Corte
2ª cena: homem chegando em casa bêbado.

Não é preciso mostrar a cena do homem num bar. Concluímos que ele chegou bêbado porque o deve ter feito, já que chegou bêbado. Esse exemplo talvez seja óbvio demais, mas nem sempre é assim. Essa capacidade de conclusão nos faz ler imagens justapostas dando sentido a elas, criando um elo. É a nossa capacidade de fugir do limite dos quadros apesar de que ninguém ou nada nos diga para fazer isso. Imagine-se dois quadros justapostos: em um temos um olho aberto, no outro um fechado. Tendemos a criar mentalmente um terceiro quadro com um olho entreaberto, criando uma continuidade e concluímos que o olho se fechou. Concluímos que isso é um ato, uma ação. Mas e se não fosse? E se ao invés disso tivéssemos um duplo enquadramento de uma pessoa piscando, no qual o primeiro quadro identificasse o olho esquerdo e o segundo quadro o olho direito? Essa técnica de sugestão é amplamente usada nos quadrinhos, no qual este só exibe alguns fragmentos da cena, e o observador que se vire para criar a idéia. Se ainda não é convincente, Scott Mccloud usa-se de mais um exemplo:

1º quadro: Homem com machado erguido, vítima assustada;
2º quadro: Enquadramento de prédios, onomatopéia de um grito.

Entendemos que o homem desferiu o golpe em sua vítima e que esta teve seu grito ecoando por toda a cidade; entretanto, não há nenhum indício de que no segundo quadro quem está gritando seja a vítima do primeiro quadro, ou de que o grito seja de uma pessoa ou mera gravação, ou de o ambiente seja o mesmo, ou até se a golpeou e, se golpeou, em que parte do corpo lhe foi desferido o ataque com o machado. Tudo isso ocorreu na sarjeta, no espaço em branco entre os dois quadrinhos. E, na verdade, quem matou a vítima foi o leitor, da forma como achou mais sangrenta e assustadora; foi ele quem pegou o machado e escolheu onde golpear. E, apesar de parecer óbvio, esse tipo de leitura abre espaço para diversas interpretações, ninguém “verá” a morte da vítima do mesmo jeito. E que, a bem da verdade, esta só foi sugerida. Essa é uma das dinâmicas mais interessantes das hqs, de forma que o artista possa criar uma leitura interativa onde não há tempo. Na verdade tempo e espaço diminuem, ou até nem mesmo existam nos quadrinhos, estando apenas na mente de quem lê. Desse jeito, páginas podem ser folheadas compulsoriamente e em ritmo frenético. E é aí que se encontra o segredo de criar quadrinhos. Na sarjeta. Mccloud chama isso de ato de fé. Constantemente exercemos esse ato de fé ao ler hqs. Preferimos acreditar que a vítima foi atacada, que o olho se fechou ao exercer esse ato de fé.

Voltando ao relato de Hiroki Endo no início deste capítulo, vimos que, segundo a tradição budista:

“Quando você acha que há algo, não há nada. Quando você acha que não há nada, há algo”

Exemplo de parada de tempo no Mangá Dragon Ball Z #51: os quadrinhos podem ser sequenciais na linha do tempo ou fragmentos de um mesmo momento

Isto mostra uma postura de valorização da ausência, do vazio. Entendendo, ou pelo menos tentando entender esse princípio de incerteza, vemos que, nos quadrinhos, o vazio ou espaço em branco é tão importante quanto a presença das imagens. E isso muda toda a forma como os japoneses encaram os quadrinhos. Este tipo de representação do real nas páginas do mangá concorre para uma narrativa mais fiel á realidade. Fragmentos de uma única cena dispersos nos quadros fazem com que o leitor monte o cenário em sua cabeça, antes que a história se inicie. O uso desta técnica faz com que o tempo "pare" no fluxo da história, para que o leitor entre na história e olhe por cantos isolados, preenchendo os espaços que não lhe foram mostrados com a imaginação, construindo na mente um "lugar". Isso também é conclusão. Em contrapartida isso não ocorria nas hqs americanas porque de início os primeiros quadrinhos advinham de tiras de jornais, onde o espaço é pouco e o artista tinha que ser objetivo na mensagem, sem poder ficar “enrolando” ou "refinando" a narrativa. Já no japão, os mangás são publicados em periódicos de calhamaços de papel de jornal com mais de 500 páginas todas as semanas a preços “miseráveis”(alguns centavos, se fosse aqui no Brasil), e depois de lidos, jogados fora, reciclados e transformados novamente em papel para novas publicações de mangá. Depois são lançadas versões encadernadas das obras, os tanko-hon, que são compradas por colecionadores.

Tal estilo de narrativa contribui para uma maior imersão do leitor na obra, além do que, o mangá geralmente é em preto e branco, outro ponto positivo para imersão do leitor, que não precisa ficar vislumbrando cores exuberantes. Esta preocupação com a "ausência" contrabalanceando a "presença" advém de uma necessidade de fazer o leitor estar lá, e não chegar lá.

Nos mangás também é muito presente casos em que o “parar do tempo” é usado como recurso contemplativo, em momentos de tensão ou para “digestão” da mensagem pelo leitor, como uma pausa ou silêncio após meia hora de discurso.

Mas não é só esse tipo de narrativa que caracteriza o mangá como mangá e não como hq. Uma série de outros fatores o distinguem como quadrinhos específicos de uma cultura específica. Já foi dito aqui que o mangá é importante ferramenta de ensino escolar, além do que, ao contrário das hqs, o mangá dispõe de um publico leitor muito maior(só o Japão é pilhado de japoneizinhos), gozando de um retorno muito maior se em comparação com os comics. Tanto que há determinadas classes de leitura, voltadas cada qual para seu publico alvo e, em geral é mais natural cada publico se interessar pelo mangá de sua faixa etária correspondente, por exemplo. O tipo de mangá sararimen não atrairia uma criança de 12 à 14 anos pois este não abordaria assuntos do seu meio ou mundo interno, mas sim assuntos próprios do universo adulto(exclui-se aqui a palavra adulto relacionada a conteúdo pornográfico), mundo empresarial, divórcio, família, desemprego e etc. O mangá em muitos sentidos contribui para a imersão do leitor. E para isso, usa-se de signos do cotidiano próprios da realidade do publico a que se destina. Ambientes como colégios, metrôs, meio de trabalho, vestuário do personagem, modo de falar, assuntos discutidos... Tudo isso concorre para uma clara identificação com o leitor, de modo que ele se sinta dentro da história, mais familiarizado com a história. Em relação ás onomatopéias, os japoneses deram equilaventes escritos à quase tudo na natureza, até conceitos mais abstratos, desde o próprio silêncio ou ao clima emocional dos personagens ou história. Outra característica é que, assim como a vida, as histórias tem e um fim, ao contrário dos comics onde seus personagens nunca envelhecem, a não ser em edições especiais. Por esses motivos, o mangá é antes de tudo um reflexo da cultura japonesa, e atualmente, uma ferramenta de propagação dessa mesma cultura japonesa.

Atualmente, o que chamamos de fenômeno de aculturação vem ocorrendo no Brasil com a veiculação do mangá, de modo que é difícil de classificar um quadrinho criado em solo brasileiro com as características mais superficiais deste(olhos grandes, linhas de ação, as onomatopéias exageradas), como mangá, caindo para uma denominação de mangá brasileiro – o que talvez não seja uma classificação precisa, pois o mangá é antes de tudo cheio de signos do cotidiano do japonês. Verdadeiras comunidades de eventos ligados à Animes(como é chamado o mangá que se torna animação televisiva) e mangás ocorrem todos os anos e cada vez mais cresce o número de fãs que criam fanzines ou baseados em sua série favorita ou histórias originais próprias. É um mercado alternativo na produção de quadrinhos que cresce constantemente, ainda melhorando e se refinando, onde se podem encontrar idéias muito boas.

Combo Rangers de Fabio Yabu


Holy Avenger arte de Érica Awano, história de Marcelo Cassaro

Victory Contra-Ataca#1 arte de Eduardo Francisco, história de Marcelo Cassaro e Petra Leão

Turma da Mônica Jovem #1

Exemplos desse quadro é o notável sucesso de quadrinhos como Holy Avenger(cumpriu uma tiragem mensal de 40 números), Victory, Combo Rangers, nos quais, dentre sua equipe atuante encontram-se descendentes de imigrantes japoneses como Érica Awano e Fábio Yabu. Mais recentemente, vemos o lançamento de Turma da Mônica Jovem como um forte indício da influência do mangá como estilo. A revista traz em sua capa a indicação “em estilo mangá” como recurso chamativo ao publico leitor desse material. As páginas da revista são todas em preto e branco e as cores foram substituídas pelas retículas. O traço de Maurício de Sousa sofreu uma leve adequação ao que pode se entender como um "estilo mangá", até o uso de certos signos de linguagem próprios do mangá evidenciam que este quer ser encarado como mangá. Mas muitas opiniões divergem neste ponto sobre o resultado final ser considerado mangá ou não, parecendo de início tratar-se do mesmo estilo, só que em preto-e-branco. Gostos e opiniões à parte, um ponto positivo é que a tentativa de migração de um estilo tão característico como o de Maurício para outro totalmente avesso gera o surgimento de algo originalmente brasileiro, onde há a tentativa de mudança, mas mantém-se as características principais. Constantemente, em determinadas histórias no universo do mangá, os personagens crescem acompanhando os leitores em suas vivências, havendo mudanças no perfil psicológico do personagem. Neste ponto o novo material de Maurício ganha ponto a favor: Cascão tomando banho?

19. Endo, Hiroki. Éden - um mundo infinito!


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Esse post faz parte de nossa pesquisa. Para saber mais, leia:

Introdução
Por que quadrinhos?
Press on

Por uma definição: Arte Sequencial
Definindo o quadrinho
Origens
Quadrinhos para além dos super-heróis

A linguagem e seu vocabulário
Iconografia: letra e imagens pictóricas
Texto e imagem
Pensamento ocidental X oriental

Quadrinhos Mudos
Falando sem abrir a boca uma vez
Viabilidade como mídia de comunicação de massa
Exemplos

Síntese

O projeto
Adoção de partido
Desenvolvimento do partido adotado
Experimentação

Conclusão?

4 comentários:

Anônimo disse...

mais uma vez, o texto de vcs me surpreende.

tirando um errinho ou outro de gramática (a tal das novas regras, acentuaçao de crase) o mais importante - que é o texto - está deliciosamente informativo!

=)

Cassio Polegatto disse...

Texto muito bom.

Gostei muito do comentário do Endo e como você lidou com ele, as comparações e tudo o mais. Concordo com tudo, especialmente sobre o andamento do mangá e como as revistas brasileiras pecam ao entender que estilo mangá é olho grande e arte em preto-e-branco...

Seu blog é muito bom, não vejo outros dessa qualidade sobre quadrinhos e já o indiquei pra várias pessoas, especialmente por estudar a complexidade dessa arte.

Bruno Alex disse...

Como o Cassio disse eles pensam que manga e só criar personagens com olhos grandes e desenhos bonitos de garotas precisa ter uma ligação entre os personagens que venha prender a atenção do leitor como no esquema da Jump "esforço, amizade e vitória" esse três ingrediente tem que ter em qualquer HQ no mundo

e sobre seu blog eu sou fã até queria ter mais tempo para escrever postagem assim como você, mas acho que não conseguiria

Apenas + 1?! disse...

muito bom

parabens

Mente aberta°°°°°Vida livre