Pois bem. Expliquemos então o "pulo do gato" dos quadrinhos. Comecemos a entender o valor da "fala" de imagens mudas, vida esta que nasce na nossa cabeça, apenas. As páginas dos quadrinhos estão lá, pedindo para serem lidas. Mas "ler" é algo além do que você está fazendo agora... Não é somente ler palavras, frases. Aliás, já parou para pensar que letras também são imagens? quando compreendemos isso, encaramos o desenho de outro ângulo, como se puséssemos um óculos que clareia o olhar das coisas.
O processo de aprendizado humano fez com que o conhecimento adquirido aumentasse cada vez mais, tornando-se cumulativo(ou seja, acumulando-se cada vez mais como imensos galpões lotados de livros), pois para compreender as coisas precisamos observar, comparar e interpretar, além é claro da meditar fatos. Nesse andar de carruagem, tentando entender como as coisas funcionavam, o homem precisou também entender como explicar o funcionamento dessas mesmas coisas(haja visto que são duas coisas diferentes: nem sempre pessoas que sabem muito sobre determinado assunto sabem explicá-lo com destreza para leigos), que é como o próprio pensamento humano funciona. Seria como se, para entender algo, o homem antes de mais nada tivesse de explicar o assunto para si mesmo, em passos lentos, ás vezes muito lentos.
Os filósofos usavam-se de meio parecido: na busca pela Verdade, era necessário que descartassem todo conhecimento passível de ser falso, não-verdadeiro, até que achassem aquilo que era verdadeiro em sua profundidade, que nenhum fator poderia dizer o contrário, como fez René Decartes em sua busca pelo o que era real, que no final lhe valeu a famosa frase: “Penso, logo existo.” Decartes, nessa busca pelo real descartou até mesmo os sentidos humanos, pois se reduzíssemos a realidade apenas ao que se sente, enxerga, ouve, cheira e degusta, então reduzimos realidade a uma série de impulsos elétricos interpretados pelo cérebro, conforme disse Morpheus a Neo no primeiro filme da trilogia Matrix.
Um meio eficaz para explicar algo com toda a clareza possível seria conhecer o universo do outro, suas limitações e sua liberdade de pensamento, para se usar dele para explicar a sua mensagem, que só faz sentido se o receptor a acolhe. Essa necessidade de comunicação ou arte foram os impulsos mais primitivos das pinturas rupestre como nas cavernas de Lauscaux, em 1700 a.c.; se por necessidade de comunicar-se ou por mera atividade lúdica, aparentemente sem propósito, essa foi uma das atitudes mais abstratas de toda a experiência humana.
Experiência essa que não advinha de nenhuma necessidade fisiológica básica, e que atualmente mostra-se um aspecto necessário do gênero humano. Para Ivan Bystrina, “o homem construiu uma segunda realidade sobre a primeira existente, a realidade sensível, valendo-se de sua criatividade, fantasia e imaginação, dotando-a de características signícas.” 11 E é desse segundo mundo que o homem fez seu mais importante mundo, numa expectativa de ter uma vida além das necessidades mais básicas, além do cumprir o que tenho que cumprir, fazia-se necessário valer a pena.
Dessa história toda nasceu uma importante ferramenta da comunicação, o ícone, recurso gráfico que representa uma idéia. Imagens que no imaginário humano são dotados de sentido. Ou seja, o ícone não possui informação nenhuma, a não ser aquela que o homem lhe deu. O significado banheiro masculino na verdade está na cabeça do sujeito que vê uma representação extremamente simplificada de pessoa do gênero masculino(pictograma do homem), onde só se notam as sutis diferenças quando comparado á placa do banheiro feminino(pictograma da mulher), fazendo-se assim a distinção dos formatos "feminino" e "masculino". E, por mais que o leque vestuário de uma mulher vá muito além da saia, faz parte do imaginário coletivo que elas usem saia e cabelos longos ou que prefiram a cor rosa(por isso fica fácil representar o homem como um boneco simples, de braços pernas e cabeça, enquanto a mulher necessita de uma saia ou/e cabelo).
Existem diversos tipos de ícones, mas essa pesquisa se aterá somente a dois. Para os ícones-não pictóricos, o significado é fixo e absoluto e variações em suas formas não alteram o mesmo significado, se mantidas suas características básicas. Isto ocorre porque eles representam uma informação invisível, informação do imaginário humano. Já nos ícones pictóricos ou figuras, o significado pode variar de acordo com a aparência, divergindo do real em vários níveis, desde o realístico ao mais puro abstrato.(Scott Mccloud, desvendando os quadrinhos)
Letras são os mais abstratos dos ícones, e hoje há a tendência de as separarmos das figuras como coisas diferentes, mas a bem da verdade os dois saíram do mesmo berço, e por motivos diferentes trilharam por caminhos diferentes. Em sua grande maioria, as pessoas estão acostumadas a encarar letras como somente letras, destituindo-as de toda e qualquer proeza artística em sua forma, na criação de sua estrutura, em seus mais modestos detalhes. A abstração desses ícones é tanta que para alguém que não esteja imbuído de alguma forma no universo gráfico não há diferença nas fontes, por exemplo Times new Roman e Geórgia. Não que ela não veja essas diferenças, ela vê. Sutilmente, mas vê. Sabe que há algo de estranho ali, mas não percebe. E, a bem da verdade, para alguns tipógrafos essa é a verdadeira função de um tipo(ou fonte), ou seja, passar desapercebido. Uma letra tem que ser invisível, mesmo estando ali, não pode chamar atenção para seu desenho, para que assim a mensagem seja transmitida e o conteúdo, claramente entendido. “A tipografia que tem algo a dizer aspira, portanto, a ser uma espécie de estátua transparente.” E assim foi com a fonte Helvetica. Criada para ser uma fonte universal, seus criadores a destituíram de qualquer indício de frivolidade, tendo como premissa uma fonte o mais legível possível, limitando deu desenho a nada mais que sua funcionalidade. Os traços firmes e fortes evidenciam seu desenho e ao mesmo tempo, em sua uniformidade, ela desaparece para conduzir a informação. Os espaços entre elas e ao redor delas(o branco) foram todos pensados com esse intuito de modo que ela parecesse firmemente centrada em si, firme, sem nenhum indício de abalo12. Mas o estudo da Tipografia é resultado da inovação da imprensa e formalização da caligrafia escrita. Assim como os artistas das belas artes, tipógrafos são artistas do invisível, tendo que lidar com o mundo do ícone.Ainda que nas belas artes existam obras de valoroso primor artístico e técnico, seja no estudo das cores, luz e sombra ou perspectiva e profundidade de campo, ainda assim são apenas imagens. Com mais rigor, são representações do mundo sensível numa superfície física palpável por meio de técnicas adquiridas por estudo e observação, técnicas que necessitam de conteúdo teórico e empírico. Somos tão envolvidos nesse mundo de representações que por vezes até nos confundimos com o que é real a partir do momento que conceito e representação se unem na linguagem dos ícones, como por exemplo a pintura de Magritte, A traição das imagens. Neste quadro, há uma pintura de um cachimbo, e abaixo deste, a frase "Ceci n'est pas une pipe." (que quer dizer: "Isto não é um cachimbo.")Tal é a força de expressão das imagens e nosso envolvimento com elas que por algum tempo alguém possam reinvindicar contrariado: “Como assim? Isso é sim um cachimbo!” Não percebemos que ali está apenas a representação gráfica de um cachimbo, e não o objeto, palpável em sua forma e volume. Sendo assim, apesar da imagem descrever graficamente um cachimbo, trata-se apenas de uma pintura. Isso ocorre porque veiculamos cachimbo a sua imagem, seja esta gráfica, apenas representativa ou real, quando na verdade, nesse exemplo não passa de uma tela de pintura. E podemos ir mais longe. Neste caso expecífico, para a imagem mostrada neste blog, não é nada mais do que a representação digital, composta por pixeis, de uma representação gráfica de um objeto real. É o ícone brincando com o próprio conceito por meio de sua representação... Fantástico!
Durante muito tempo muitos trabalharam nesta tentativa de hibridação entre letra e imagem pictórica na criação dos quadrinhos, mas isso não é novidade:
Tanto as letras, ícones abstratos, quanto imagens pictóricas vieram de uma mesma raiz, da mesma necessidade do homem das cavernas se comunicar. Temos o exemplo dos hieróglifos egípcios e inscrições maias, em que as figuras não tão abstratas representavam sons e palavras, ou seja, representações do mundo sensível. Como gigantescas histórias em quadrinhos em paredes ou peles de animais, podia-se(e ainda pode) ler as imagens como hoje lemos uma massa de texto. As figuras, dispostas de forma seqüencial e simbólica descreviam os acontecimentos que progressivamente ocorriam, um após o outro, tal qual temos numa hq. Contudo, a direção da leitura era feita conforme a cultura. Analisando os egípcios, com inscrições feitas em paredes gigantescas, a leitura era feita da direita para a esquerda, de baixo para cima e em ziguezague. Quando terminava-se uma linha, avançava-se para a extremidade da linha superior correspondente a da inferior. Com a invenção da prensa e consequentemente da imprensa, esse eixo quebrou-se, numa tentativa de conter a narrativa das imensas paredes numas poucas páginas de papel num tamanho, digamos, próximo ao A5(o clássico "formatinho"). A narrativa se reinventou, mas essa não precisa ser a definitiva.
Letras e imagens vieram do mesmo lugar, nasceram do mesmo berço. Em algum momento da história, essa separação foi ocorrendo, lenta e minuciosamente, um lado se abstraindo mais e mais de suas formas, simplificando-se, e o outro lado apurando-se do seu jeito, os dois lados se enobrecendo e enriquecendo, cada qual separadamente com pesquisas, aprimorando suas técnicas, movimentos artísticos e estilos, erguendo-se como verdadeiros sustentáculos do conhecimento humano, maturando-se como dois anciões de vidas repletas de experiência, acertos e erros, consagrando-se como verdadeiras artes nobres. E hoje, mas não relativamente recente por causa da história da arte seqüencial, aparece um veículo que une as duas coisas com pretensão de alavancar seu lugar. Mas não é o que ocorre. A hq continua inferiorizada, apesar dos inúmeros esforços. De um modo geral talvez não seja esse o propósito final, o de buscar um lugar ao sol para os quadrinhos, se considerarmos todos os artistas envolvidos no processo, analisando essa industria. Os interesses parecem ser mais... ...financeiros.
11. Pedrosa, Israel. Da cor à cor inexistente, p.?(desculpe, perdi esse dado)
12. Helvetica - o filme
13. Eisner, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial, p.13
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Esse post faz parte de nossa pesquisa. Para saber mais, leia:
Introdução
Por que quadrinhos?
Press on
Por uma definição: Arte Sequencial
Definindo o quadrinho
Origens
Quadrinhos para além dos super-heróis
A linguagem e seu vocabulário
Iconografia: letra e imagens pictóricas
Texto e imagem
Pensamento ocidental X oriental
Quadrinhos Mudos
Falando sem abrir a boca uma vez
Viabilidade como mídia de comunicação de massa
Exemplos
Síntese
O projeto
Adoção de partido
Desenvolvimento do partido adotado
Experimentação
Conclusão?
2 comentários:
Olá!
Primeiramente obrigada pelo comentário.Fiquei lisojeada com o elogio^^
Gostei muito do seu blog!
Bem informativo!
Vocês estão de parabéns,pois mostram que estudam a fundo sobre cada assunto postado. Além de mostrar que tem conteúdo!
Passarei a visitar mais vezes e ler com calma cada reportagem!^^
Sobre o mito da Caverna:
Mais uma vez parabéns!
A quadrinização está perfeita! Cada quadro consegue passar sua mensagem e a estória tem fluidez, mesmo sem falas conseguimos entender perfeitamente!
Outro aspecto que me chamou a atenção foram os quadros todos "riscados". Isso complementou a idéia e o estilo do quadrinho. Gostei muito!
Quando sai o próximo?^^
Vocês são da onde?Pensam em lançar um impresso?
Em Julho haverá uma feira de Zines dentro de um evento grande de Animê. Não sei se interessa a vocês, mas de qualquer forma estão convidado!^^
abraços,
P.S: O Cravo por acaso é o Rafael Cravo?
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