Por anos a fio artistas contribuíram, durante toda a vida, para a história das histórias em quadrinhos. O processo de produção, em sua grande maioria, era feito intuitivamente, e alguns, em meio à sua rotina de criação, iniciaram uma pesquisa silenciosa do olhar, questionando-se internamente sobre o funcionamento dessa arte. Conforme diz Will Eisner1:
Ler uma história em quadrinhos por si só já é um processo intuitivo. Ponha uma imagem ao lado da outra e somos impelidos a criar um tipo de conexão entre as duas, pelo simples fato da proximidade entre uma e outra. Por que fazemos isso é uma questão curiosa. Talvez seja pelo nosso apelo e necessidade do subjetivo, uma necessidade de “criar” como forma de satisfação. Como diz Scott Mccloud: “Somos uma espécie centrada em nós mesmos.”2 Estamos acostumados a nos ver onde não estamos, atribuindo emoção e sentimento a objetos que não os tem; por algum motivo, humanizamos as coisas ao nosso redor como forma de identificação e criação da própria individualidade. Se por necessidade ou por mero escapismo, foi assim que acabou surgindo a “arte” como algo além de nossas duas necessidades mais fundamentais: a sobrevivência e a reprodução3. Elevar o quadrinho ao status de arte parece pretensioso, por mais contribuições que artistas tenham feito nas últimas décadas, como Will Eisner, Art Spiegelman, Joe Sacco entre outros inúmeros exemplos.
Um fenômeno recente vem ocorrendo no universo dos quadrinhos contribuindo para uma mudança do olhar sobre o mesmo. Em 1978, é lançado Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço de Will Eisner. A obra foi entitulada por Eisner de graphic novel, que, apesar das 178 páginas, não era realmente uma novela, mas uma coletânea de quatro contos diferentes. Pelo volume de páginas, realmente se tratava de um livro, mas o conteúdo era tão e puramente quadrinhos que cunhar o termo livro seria impreciso para defini-lo. Alguns seguiram o mesmo exemplo depois, e termos como romance em cartuns surgiram. “Elevar” história em quadrinhos à nobre condição de livro rendeu quarenta anos depois o termo Comic Books, usado hoje também como forma de vender coletâneas de periódicos mensais, não necessariamente graphic novels, mas que se encaixam na definição(Scott mccloud, Reinventando os Quadrinhos). Um graphic novel, é claro, tem a pretensão de ser algo mais nobre, com capa dura, maior qualidade de impressão e definição de imagens. Portanto, temos aí o pagar mais caro como ato de interesse de colecionar. Quadrinhos passam então a ocupar estantes, alcançando status de livro.
Alguns classificam quadrinhos como nona arte, mas haveria lugar para eles entre os “pilares” que de alguma forma lidam com uma leitura e conhecimento como as Belas artes e a Literatura? Se ousássemos classificar quadrinhos como literatura, de certo haveria aqueles, grandes eruditos da cultura literária, que repudiariam tal tentativa. Visto de uma certa perspectiva, entendemos que ler é um ato de decodificação de informação. Letras são símbolos, imagens que representam algo, cada qual com sua configuração específica remetendo a um significado específico(som), e que, junto de mais letras, assumem um outro significado, o da palavra, que agrega vários subconjuntos(letras) e temos também frases, parágrafos, textos e por aí vai... Tudo isso remete a uma série de representações de informação essenciais para a comunicação humana. Ler palavras, portanto, não é nada além que uma forma de “ler” imagens. Temos outras formas de leituras por meio de representações e simbolismos, como a própria matemática, as pautas musicais, gráficos, mapas e etc.Empecilhos para dignificar o quadrinho como arte? A estética do produto também foi um problema. Por muito tempo a forma de reprodução das revistas era feita em papéis vagabundos muito ruins e com cores chapadas berrantes. Chamar “isso” de arte era a mesma coisa que ser alvo de piada. O mesmo aconteceu com as tiras de jornais, que apesar de conquistar o apreço do público(como exemplo, The Yelow Kid), ainda assim os próprios produtores não as consideravam como tal. É interessante frisar que as tirinhas vinham de graça, um bônus do jornal comprado. Não se comprava jornal para ler quadrinhos, mas lia-se quadrinhos porque comprava-se jornal. Ou seja, o quadrinho vinha de brinde. Como valorizar algo dado de graça?
Por muito tempo cultuou-se a idéia de que histórias em quadrinhos eram para crianças, o que rendeu sérios problemas para a indústria quadrinhística com a publicação em 1954 de Sedution of the Innocent, do psicólogo Fredric Wertham, no qual ele acusava os quadrinhos de influenciarem negativamente as crianças abordando temas como sexualidade, delinqüência juvenil e práticas de crimes, tendo até queima de quadrinhos em praça pública. Fato é que, dentro de uma visão limitada de hqs como veiculadas para um público infantil e subsequentemente categorizá-la como produto também infantil era mais um empecilho para o quadrinho alcançar seu status de “arte”.
Com a invenção da imprensa e da reprodução de imagens, surge o debate do que é realmente arte e qual seu verdadeiro valor. A partir do momento que uma imagem pode ser reproduzida diversas vezes e perde seu valor unitário, posso ter várias Monas Lisas em minha casa, sorrindo no tapete do meu banheiro, na propaganda publicitária da revista que estou lendo ou no copo onde tomo o café matinal. Movimentos como a Pop Art e Dadaísmo foram importantes neste aspecto. É passível de uma mídia de massa ser chamada arte?
Para Mccloud, o quadrinho assume postura de obra artística a partir do momento que é realizado sem ter como prerrogativa necessidades básicas de sobrevivência humana.
A junção de letra e imagem para contar algo mostrou-se eficaz, e diversos dos chamados quadrinhistas usaram-se desta linguagem para contar suas histórias, uma espécie de tradição de algo que deu certo até agora e funciona desse jeito, então faço assim, e na grande maioria poucos foram os que viram algum grande potencial nesse meio e dedicaram estudos e críticas sérias quanto à essa linguagem. Em sua maioria, os artistas tinham como prioridade a qualidade gráfica de seus desenhos e as exigências do mercado. E se no começo fosse diferente, talvez o destino dos quadrinhos hoje fosse diferente.
Procurando por uma espécie de cronologia da evolução das histórias em quadrinhos com o objetivo de determinar suas origens, acharíamos N fontes que determinariam o periódico semanal The Yelow Kid publicado pela primeira vez entre 1894 e 1895 como o primeiro personagem de história em quadrinhos, pelo menos nos moldes do quadrinho atual. Yelow Kid, de Richard Felton Outcault goza do prestígio de ser o primeiro a utilizar balões como recurso de fala, apesar do personagem se comunicar com textos que aparecem em seu pijama amarelo.
Contudo, é necessário antes buscar uma definição, ter em mente o que é história em quadrinhos antes de qualquer coisa. O termo arte seqüencial cunhado novamente por Will Eisner define bem os quadrinhos, abrindo um amplo campo para debate do assunto.
Imagens isoladas são somente imagens, enquanto que se estas mesmas imagens fazem parte de uma seqüência de no mínimo duas, temos o princípio das histórias em quadrinhos acontecendo aqui. E não necessariamente é preciso existir alguma correlação nas imagens desta seqüência, pois nós mesmos nos encarregamos de conceder um sentido à elas(como será visto mais a frente). O termo arte seqüencial é amplo e pode ser usado também para definir a linguagem cinematográfica. Sendo assim, a via de regra para buscar uma definição precisa é que no cinema o que ocorre é uma seqüência de imagens superpostas, ou seja, uma sobre a outra, criando a ilusão do movimento, enquanto nos quadrinhos temos imagens justapostas, ou seja, uma ao lado da outra, em espaços diferentes. O tempo do cinema seria o que o espaço é para o quadrinho. (Scott Mccloud, Desvendando os Quadrinhos)
Dentro desse raciocínio ele define histórias em quadrinhos como “imagens pictóricas e outras justapostas em seqüência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou produzir uma resposta no espectador.”
Anterior a essa definição teríamos problemas em definir quadrinhos como justaposição de imagens estáticas em espaços diferentes, porque dentro desse mesmo raciocínio, este texto impresso neste papel que está sendo lido agora seria considerado uma história em quadrinhos pelo simples fato de que letras são imagens estáticas justapostas em espaços diferentes...
Não é imprescindível também a existências de letras para criar quadrinhos. Há quadrinhos mudos, sem balões de fala, que utilizam-se de recursos da imagem para comunicar a mensagem.
Tendo esta definição, retrocedemos e muito ao início do que pode ser considerado história em quadrinhos. Desde as pinturas rupestres nas mais primitivas cavernas do mais primitivo homem até as inscrições na tumba do faraó egípcio, conta-se toda a vida ou acontecimentos de um dia deste ou daquele em imagens dispostas numa seqüência; exemplificando fatos que se desencadeiam, tendo um começo e progredindo até um final específico(as inscrições egípcias eram lidas em ziguezague e debaixo para cima). Os vitrais e os quatro quadros das quatro quedas de Cristo dispostos lado a lado e sequencialmente nas igrejas...
Vemos então que o termo história em quadrinhos define a forma, não o conteúdo pelo qual ela se efetiva. Não a forma como material utilizado, mas a forma de comunicar a mensagem, ou seja, a arte seqüencial. E tinta sobre papel é apenas uma das superfícies, apenas um dos modos de termos contato com quadrinhos; há outras maneiras assim como houve hieróglifos e inscrições rupestres(e que não haja depreciação em classificá-los como quadrinhos!), como existe hoje a hq digital, e outras formas ainda esperando para serem descobertas.
Contudo, ainda há um principal ponto que define os quadrinhos. Antes do desenho, antes do gênero, antes do material empregado para sua confecção. Antes de qualquer outra coisa, história em quadrinhos é a arte de comunicar algo. E a principal pergunta para alguém que deseja ingressar no ramo é: “Você quer dizer algo ao mundo?”
1. Eisner, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial, p.6
2. Mccloud, Scott. Desvendando os quadrinhos, p323. definição particular de Scott Mccloud ao tentar enquadrar histórias em quadrinhos como objeto artístico.
4. Eisner,Will.Quadrinhos e Arte Sequencial, p.5
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Esse post faz parte de nossa pesquisa. Para saber mais, leia:
Introdução
Por que quadrinhos?
Press on
Por uma definição: Arte Sequencial
Definindo o quadrinho
Origens
Quadrinhos para além dos super-heróis
A linguagem e seu vocabulário
Iconografia: letra e imagens pictóricas
Texto e imagem
Pensamento ocidental X oriental
Quadrinhos Mudos
Falando sem abrir a boca uma vez
Viabilidade como mídia de comunicação de massa
Exemplos
Síntese
O projeto
Adoção de partido
Desenvolvimento do partido adotado
Experimentação
Conclusão?
Um comentário:
muito bom o texto! muito bom mesmo!
=)
discordo de alguns pontos pois concordo com Paulo Ramos, do Blog dos quadrinhos, que diz que história em quadrinhos é história em quadrinhos, não é literatura, não é livro, é história em quadrinhos. O livro dele "A Leitura das Histórias em Quadrinhos" é muito bom! Recomendo!
=)
mais uma vez, parabéns pelo texto!
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